O tempo ...

O tempo e a matéria na execução artística

Para compreender uma obra de arte, é fundamental colocarmo-nos do ponto de vista do artista, embora de antemão saibamos que não o conseguimos inteiramente.
Ora, para nos colocarmos no ponto de vista do autor da obra de arte, precisamos de refa­zer dois trajectos: a sua caminhada interior e a elaboração externa que levou à sua realização. Esta é, na verdade, uma elaboração para a qual contribuem dois grandes factores: um que tem lugar numa faculdade interior, a fantasia; outro, que diz respeito à matéria usada. pelo artista, e ao tempo em que decorre a sua elaboração.
O tempo de realização da obra de arte depende não só da matéria a que o artista lan­çou ou teve de lançar mão, mas da sua própria índole pessoal, isto é, do seu modo de viver o acto criador.
O tempo de execução de uma pintura a fresco é muito diferente do que pode ser gasto na execução de uma pintura a óleo. Hugo Van der Goes podia dispor de meses e até de anos para executar um tríptico. Mas Masaccio tinha que lutar contra o tempo para encher de cor, num só dia, uma determinada porção de argamassa estendida ao começo da manhã, na Capela Brancacci. Dispôs Miguel Ângelo, por exemplo, de tempos radicalmente dife­rentes para pintar a figura de Adão no tecto da Capela Sistina ou para desbastar o grande bloco de mármore extraído das pedreiras de Carrara até «libertar» a grandiosa figura de David.
Todos esses tempos, através dos quais se estende a realização da obra artística, dependem da própria matéria que o homem comprometido neste processo trabalhou.
A excelência do artista manifesta-se muitas vezes no modo como é capaz de tirar par­tido das diferentes capacidades, dir-se-ia até das limitações, e inclusivamente do tempo que condiciona o manuseio dos diferentes materiais.
Acontece mesmo que o uso de diferentes materiais permite ao artista revelar facetas diferentes da sua personalidade.
Obras de restauro executadas nas últimas décadas anos levaram a destacar, em muitas pinturas a fresco, a camada superficial de reboco sobre que foram estendidas as cores, permi­tindo a revelação da sinopla subjacente, isto é, do desenho que o artista fazia sobre a parede, antes de se lançarem as camadas de argamassa correspondente à superfície que ia ser pintada em cada dia. Tal revelação trouxe inúmeras surpresas, que tiveram repercussões no desfazer de dúvidas e no resolver ou levantar de problemas quanto à atribuição de numerosas abras de arte. Mas o mais importante foi a revelação de que nomeadamente estes desenhos, feitos mais à vontade e com menor premência de tempo, traduziam outra garra e outra vibração que não se encontravam nos quadros a que serviram de suporte. Isto só para falar nos casos em que na sinopla se nota a mão consagrada do mestre, enquanto na pintura andaria por vezes a mão ainda imatura do aprendiz.
Mas para além dos tempos que são uma consequência da matéria, há o tempo depen­dente de um processo interior, de uma poética individual que se traduz num processo exte­rior, onde há ritmos diferentes, consoante o homem e, não raro, o seu momento.
Fluências temporais diversas caracterizam e identificam correntes e artistas isolados.
Há artistas cuja obra se desenvolve em ritmos nem sempre iguais, onde os tempos se sucedem com duração maior ou menor, como sucede com um Simone Martini, um Ticiano, ou um Picasso. Mas já um Polaiollo, um Rembrandt, um Delacroix e mesmo um Van Gogh, fazem os seus percursos em tempos uniformes e ineludivelmente velozes.
A duração lenta caracteriza a obra escultórica de Nicola Pisano, e a pintura de autores como Giorgíone, Gaugin e Morandi. O fluir do tempo sucede, porém, com ressonâncias e com aspectos singulares na obra de cada artista, como na obra de cada homem.
O tempo como realidade autónoma não existe. Não existiu o dia de ontem, como não existe o dia de hoje nem o de amanhã. O que existe são as realidades espirituais, que transcendem o tempo, ou as realidades físicas, que se continuam, alargando os limites da sua finitude e imperfeição, em momentos sucessivos, a que é possível dar uma certa unidade, para as tornar conexas e compreensíveis, como pertencentes ao(s) mesmo(s) objecto(s), criando uma nova realidade intelectual, que é o tempo.
Giorgione, ao pintar a «Tempestade» era capaz de guardar no seu íntimo um tesouro imenso de imagens, que em seguida ia filtrando, seleccionando e harmonizando com lentidão e serenidade. Morandi, para executar um quadro tão simples como os célebres conjuntos de garrafas ou pintar a mais austera das suas paisagens, necessitava de desdobrar o seu trabalho por uma multidão de dias sucessivos, com a mesma situação atmosférica, em horas muito limitadas de cada dia, para poder absorver como desejava a poesia inesgotável de cada átomo de luz, de cada reflexo cromático. Serve este exemplo para se ver como é impossível aprofundar a compreensão de cada obra, sem entrar a sério no estudo da maneira de operar do artista, sem reconstruir pelo menos genericamente o seu itinerário interior.

António Matos Reis

escrito em 06.03.1981
para a revista Domínios, n.º 2 (Março), 1981, editada por Tiago Manuel