Desiludido com as perturbações que se tinham seguido a uma
revolução idealista, inicialmente acolhida com entusiasmo primaveril, e
sequioso de novos horizontes, em 1976 rumei em direcção a Florença, com o
intuito de frequentar estudos especializados no âmbito da história da arte, sob
a direcção de Carlo Ludovico Ragghianti, conhecido pela sua militância cívica e
cultural desde os tempos da luta contra o fascismo e consagrado na Itália como
um dos mais profundos conhecedores do fenómeno artístico.
Ragghianti, designadamente a partir dos seus estudos publicados
em “La Critica d’Arte”, na “SeleArte” e na nova “Critica d’Arte”, promoveu a
renovação das concepções da estética e da metodologia da história da arte. Aos
seus olhos, a arte aparece entendida no seu todo como linguagem, com resultados
idênticos àqueles a que veio a chegar John Dewey.
Partindo de Giambattista Vico, de Francesco de Sanctis e de
Benedetto Croce, assim como da experiência da linguística e da teoria da “pura
visibilidade” do neokantiano Konrad Fiedler, o pensamento de Ragghianti desenvolveu-se
como uma revisão da herança do formalismo puro ou psicológico, em antítese ao
positivismo, ao naturalismo, ao esteticismo e a toda a espécie de alienação,
constituindo a base de uma nova ciência da expressão e da linguagem figurativa,
reconhecendo a singularidade do seu valor humano e cultural, em razão do qual a
arte, concebida como “fare” (fazer) autónomo, é sujeito e factor de vida e de
história, e não apenas instrumento e tradução ou tautologia de outros saberes
ou linguagens.
O Curso de Estudos Especiais de Crítica de Arte, que frequentei
sob a orientação de Ragghianti, incluía como uma das suas componentes
fundamentais um curso de museologia, em que era acentuada a sua importância
como ciência da comunicação visual, e daí se extraíam as últimas consequências,
em relação às disciplinas a que não podia ser estranha a formação do museólogo.
Entendi ainda melhor a importância desta ligação da museologia,
como ciência e técnica da comunicação visual, à compreensão do fenómeno
artístico e à história da arte, quando, em 1980, fui convidado para dar início
à remodelação do Museu Municipal de Viana do Castelo.
Os ensinamentos de Ragghianti ajudaram a compreender as obras de
arte não como realizações excepcionais de um singular génio, mas como manifestações
concretas de uma actividade humana que procura ordenar harmoniosamente as
imagens confusamente apreendidas pela nossa fantasia.
A convicção de que o conhecimento do processo de elaboração – do
“fazer” – da obra de arte é fundamental para que a possamos compreender,
impelir-me-ia, já depois de ter escrito o primeiro ensaio de síntese e revisão
da história da louça de Viana, a frequentar, em 1985, um curso de cerâmica –
fabrico e restauro – sob a direcção do mestre florentino Marcello Fantoni. De
facto para escrever e ensinar em relação a qualquer género artístico, é
indispensável situar-se no interior do processo, de modo a conhecer por dentro
os materiais, as técnicas, as dificuldades que nos opõem e os recursos que
oferecem.
Foi também à luz dos ensinamentos de Ragghianti que entendi o
valor dos trabalhos de Alois Riegel, especialmente, no que respeitava à
temática cujo estudo me interessava, e não obstante a remota data da primeira
edição, o carácter paradigmático do livro Stilfragen, que pude estudar
na versão italiana Problemi di Stile, publicada pela Feltrinelli em
1963.
Fiedler asseverou que “a necessidade de decoração é uma das mais
elementares necessidades do homem, mais elementar do que a da protecção
do corpo”. Em oposição à teoria que afirmava que a obra de arte nada mais seria
que o produto mecânico de três factores – o uso a que é destinada, a matéria de
que é feita e a técnica utilizada – Riegel defende que “a obra de arte é o
resultado de uma determinada e consciente vontade artística, que se substitui,
após dura luta, à matéria e à técnica”.
Imbuído desse espírito, sob a influência de Riegel, iniciei, em
1983, depois de uma séria reflexão compartilhada com C. L. Ragghianti, o estudo
da cerâmica artística portuguesa, a partir das colecções recolhidas no Museu
Municipal de Viana do Castelo, cuja importância, geralmente reconhecida, tive
ocasião de sublinhar na comunicação apresentada em Atenas, em 1992, no
Inaugural Meeting of Ethnographical Museums in the Countries of the European
Community.
Depois de múltiplas vicissitudes, de momentos de entusiasmo
entremeados com outros de esmorecimento, de simples paragens devidas às
limitações pessoais, a variados afazeres, e a dificuldades várias – em que os
anos recentes foram especialmente férteis – foi possível apresentar finalmente,
como resultado desse trabalho, o estudo dedicado às faianças produzidas em
Darque, sob o título A Louça de Viana.
Texto extraído do prefácio do
livro
A Louça de Viana na época áurea da faiança portuguesa,
Lisboa, Livros Horizonte, 2003.
A Louça de Viana na época áurea da faiança portuguesa,
Lisboa, Livros Horizonte, 2003.